sexta-feira, 25 de março de 2011

Entorpecida

- Alô. Oi. Sou eu. Você sabe quem é, você tem que saber.Tantas palavras de amor sussurradas no teu ouvido, você não pode ter simplesmente esquecido o som da minha voz. Você ainda se lembra? Diz que se lembra? Sabe, talvez você não me queira mais, mas, por favor, não me esquece. Guarda, pelo menos, o som das nossas risadas, nossas noites, os pedaços de mim que eu arranquei com as unhas e te entreguei. O que? Não, eu não bebi. Não, já disse, não mesmo. Ok, só um pouco. É que a bebida confunde momentaneamente meus sentidos, e eu chego a acreditar, na embriaguez, que existe uma forma de ser diferente. É como se eu, de repente, não tivesse que cometer sempre os mesmos erros, é como se eu magicamente tivesse coragem para enfrentar o mundo, num segundo eu não estou mais sozinha, e às vezes até imagino que não te perdi. Sabe... Sozinha eu sempre fui, você mesmo dizia que eu era daquelas pessoas que carregam a solidão nos olhos, mas pelo menos minha solidão era compartilhada, e eu podia me enganar às vezes. Agora não. É solidão física, solidão concreta. E eu estou tão dentro de mim, tão em contato comigo mesma, que a faca da solidão está me fazendo em pedaços. Sabe o que é pior? É que são golpes lentos e gradativos de uma faca cega. Eu acho que vou surtar. Não, não é brincadeira. Eu já não durmo, eu já não como, eu não consigo escrever mais. Estou vivendo no piloto automático, sabe como é? Estou ouvindo aquela música do Pink Floyd incessantemente, do "The Wall" que você me deu, sabe quando o Waters canta assim "I have become comfortably numb"? É isso. Me diz, quem pintou a vida de cinza? Sabe... Você me disse pra eu ser feliz, pra procurar outra pessoa. Mas não dá pra não amar você e só você, não dá pra esquecer as nossas noites eternas, depois de toda a nossa heresia, tantos segredos compartilhados, tanta vida dividida, tantos sonhos sonhados juntos, tantas beijos salgados de lágrimas, os dias em que nos despíamos desesperados, como se o nosso corpo precisasse estar junto, como se o teu corpo e o meu corpo fossem o alívio pra toda a dor. Não dá pra simplesmente esquecer. Como você ousa pedir que eu me esqueça? Acho que você sabia disso desde o começo. Do que? Você sabia que eu jamais te esqueceria. Não, por favor, não desliga. Eu prometo que não falo mais disso. O que? Se eu estou usando algo mais forte? Não, hoje não. O que? De vez em quando. Eu sei, eu sei, essa coisa que a gente conversava, de auto-destruição e não sei o que. Mas não é só isso. É que tá tudo vazio, sabe? Tá vazio demais. "Um vazio se faz em meu peito, e de fato eu sinto em meu peito um vazio". Lembra como você tocava lindo essa música no violão? Você ainda toca Cartola? Eu? Parei de dançar. Ah, porque já não tem sentido. Eu expressava o que tinha dentro de mim, mas não tem mais nada... Não é pessimismo. Não, não é. Eu não sei explicar o que é. Repete. Ah, tenho cuidado dela sim, tá toda florida. Mesmo. Acho que é a única parte da casa, de mim, que ainda concentra um pouco de cuidado e atenção. Sabe por que eu cuidei da tua roseira? Porque ela é um pedaço de você. E eu tenho cultuado cada pedaço de você nessa casa, como uma maníaca, uma obsessiva, uma louca desvairada... No fim, a conclusão que eu tiro disso tudo é que o amor só infertilizou meu ser, meu coração, meus pensamentos, minhas idéias. O que? Não, eu não estou dizendo que a culpa é sua. É só que eu estava olhando aqui da janela a enxurrada, a água descia com extrema violência e ia levando tudo pelo caminho. Passou uma pela minha vida. Não, não foi você. Foi a crueldade de perceber de repente a realidade, de olhar-me no espelho e dar-me conta do ser deplorável que eu sou. Perder você foi só mais uma prova da minha incompetência. Eu nasci errado... O que? Pra onde? Não, por favor, eu imploro, não desliga. Eu sei. Eu entendo. Não, não entendo. Não me deixa aqui sozinha, eu estou com muito medo de mim. Não vai. Por favor? Você tá aí? Você tá aí? Alô?

5 comentários:

  1. as pessoas sempre guardam esses pequenos pedaços do passado como nostalgia. é sempre bom lembrar por músicas, poemas ou telefonemas que já se amou alguém, mas no fim, sempre se segue em frente.

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  2. Já me entorpeci, mas nunca liguei pra ficar me declarando... só mandei mensagens. Que, na maior parte das vezes, não tinham resposta alguma. O bom dessa vida é que tudo passa.

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  3. Sofia,
    eu to assim, sabia?
    To mendigando feito louca amor de outrem.

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  4. É o tipo de conversa (influenciada pela bebida, talvez) que venho evitando há anos. Quanto mais evito a declaração, mais ela me persegue e me tira do sério.

    Seu texto é lindo, de verdade. Me tocou em vários tópicos, me deu um puxão de orelha mesmo não sendo a intenção. Agora vou ouvir Jota Quest que é pra afogar a mágoa em músicas lotadas de glicose.

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  5. Uau. Eu fiquei até meio tonta.
    É uma conversa densa, tocante. Acho que não tem como não se identificar mesmo que em um ponto ou outro.

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